Clarice Fortkamp Caldin
Resumo: Pretende destacar a experiência da fala
falante nas personagens femininas dos contos de fadas. Com uma abordagem
diferente da psicanalítica, elabora uma interpretação desses contos pautando-se
nos poderes da voz. Discorda da crítica feminista que condena os contos de
fadas. Apresenta a fome como uma temática constante nessas narrativas
ficcionais. Incentiva aos bibliotecários a liberdade de interpretação de tais
textos.
A literatura medieval foi nitidamente marcada
pela presença de jograis e de jogralesas. As vozes, na maioria, masculinas,
tinham também, a parceria feminina. Segundo Zumthor (1993, p. 67):
pela boca, pela garganta de todos esses homens
(muito mais raramente, sem dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma
palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o
imaginário, divulgando e confirmando mitos, revestida nisso de uma autoridade
particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do
juiz, do pregador, do sábio.
Jograis e jogralesas se configuravam como
intérpretes da palavra poética, ora cantando, ora declamando poesias, ora
contando histórias, ora realizando a leitura de algum feito heróico da realeza,
ainda que “as jogralesas, muito numerosas no século XIII, pareçam ter
sido principalmente dançarinas.” (ZUMTHOR, 1993, p. 63, grifo do autor).
Tais intérpretes da poesia não eram, como
sempre se acreditou, marginais. Muito embora alguns tivessem vida nômade, indo
de feudo em feudo, outros nutriam certos vínculos empregatícios com
determinadas cortes régias. O certo é que comiam das iguarias do rei,
vestiam-se com roupas alegres e faziam do uso da voz seu modo de vida e
ganha-pão.
Nessa sociedade medieval as mulheres não
estavam excluídas. Zumthor (1993, p. 63) destaca “Agnes, cantora favorita do
rei Venceslau da Boêmia, por volta de
O mesmo se pode dizer a respeito das contadoras
de histórias. Vindas de camadas sociais diferentes, ocupando funções sociais
diversas, as mulheres se configuraram como narradoras por excelência,
valendo-se da voz com meio de transmissão da fala falada: os rituais narrativos garantiam a perpetuação
de velhos contos. Nas veilllés, nos encontros noturnos para
troca de fofocas, notícias e histórias, as mulheres exerciam seus poderes da
fala.
Warner (1999) historiou a trajetória das
narradoras. Apresenta Sibila, profetisa de Apolo, que, com a expansão da cristandade
refugia-se em uma gruta, exercendo as artes mágicas, uma delas, a de contar
histórias. Segundo a Autora, a gruta da Sibila “foi mencionada pela primeira
vez numa lenda medieval, não clássica: aparece no romance cavalheiresco Guerino il Meschino, escrito
por Andrea da Barberino (também chamado Andrea dei Magnabotti) em
De acordo com pesquisas da Autora, as
narradoras de histórias no mundo ocidental remontam aos gregos. Assim é que
Platão já falava no “conto das velhas”, e Apuleio usou a expressão “um conto de
velhas.” Warner (1999, p.39, 40) esclarece que “a ligação entre a fala das
velhas e as fábulas consoladoras, eróticas e muitas vezes fantásticas, parece
profundamente entrelaçada com a própria linguagem e com o papel da fala das
mulheres.”
Assim, feiticeiras, tecelãs, velhas
mexeriqueiras, criadas ou amas-de-leite, as narradoras de histórias valiam-se
da voz para fortalecer o laço social, expressando sua opinião em um mundo
masculino por meio da narração de contos de fadas.
Como bem disse
Warner (1999, p. 22):
Os contos de fadas
sugerem uma situação em que o próprio menosprezo pelas mulheres abriu, para elas, a
possibilidade, de exercitar a imaginação e comunicar suas idéias. A
responsabilidade das mulheres pelas crianças, o desprezo vigente por ambos os
grupos e a suposta identificação daquelas com as pessoas simples, a gente comum,
entregaram-lhes os contos de fadas como um tipo diferente de estufa, onde
podiam semear seus próprios brotos e plantar suas próprias flores.
Enquanto narradoras de histórias, as mulheres
eram toleradas com complacência pelos homens. Afinal, exerciam a fala falada. Outra coisa muito diferente
foi quando começaram a escrever histórias. A palavra falada, aparentemente,
cairia nos ouvidos de crianças e de outras mulheres. A palavra escrita, por
outro lado, corria o risco de cair nos ouvidos dos homens. As mulheres
estariam, assim, entrando em território proibido, esboçando a fala falante. A reação não se fez esperar. Molière
satirizou essas intelectuais em suas peças Les précieuses ridicules e Les femmes savantes. Muito embora Molière estivesse satirizando as
mulheres, expôs também os ridículos de seu tempo.
As mulheres aristocráticas do século XVII não
se deixaram intimidar por homens que as ridicularizavam. Continuaram criticando
os casamentos arranjados e procuraram trocar idéias em um ambiente literário
com a finalidade de cultivar relações igualitárias com os homens. Assim, quando
a tecelã, a fiandeira e a criada cederam lugar à literata, a fala feminina
alçou vôo. De narradoras, passaram a escritoras. As mulheres puderam, enfim,
dar vazão à fala falante.
Para Felski (2003), todas nós somos contadoras
de histórias. Dividimos nossas histórias de vida umas com as outras. Segundo a
Autora, as escritoras atuais deveriam nutrir a preocupação maior de criar e
inovar novas tramas para a mulher. Sair do lugar-comum que são as histórias de
amor trágicas, com heroínas que recebem o prêmio do casamento ou a castigo da
morte – o modelo tradicional, ainda que com variantes.
Na verdade, na tentativa de apresentar uma
mulher atuante na trama, as escritoras contemporâneas esboçam histórias de
mulheres bem sucedidas profissionalmente, mas que, em matéria de vida
sentimental, são um fracasso. É como se a fala falante no exercício da profissão impedisse o coração
de sentir. É como se recebessem uma punição pelo privilégio da voz. Como paliativo,
o sexo promíscuo que satisfaz por instantes, mas deixa lacunas ao longo do dia.
As escritoras atuais narram, também, histórias
de mães e filhas: amor e ódio, sussurros e gritos – essa é a nova voz das
mulheres nas histórias que tratam dos conflitos de mães e filhas. Rich (apud
FELSKI, 2003) destaca a falta da fala das mães. A elas não é concedido
expressar seus anseios. Ser mãe basta. Às filhas, mulheres modernas, é
concedido o direito de exporem sua voz. Assim, cabe às mães a fala falada e, às filhas, a fala falante.
Felski (2003) destaca Margaret Atwood, Ângela
Carter e A. S. Byaoth, escritoras que, inspiradas nos
tradicionais contos de fadas, apresentam as mulheres em diferentes papéis: da
fada à bruxa, da vítima à algoz. Inseridas em uma realidade que permite e exige
várias posturas, as mulheres que Atwood retrata têm o poder da fala. Esse poder, já o tinham as personagens dos
contos de fadas, muito embora tal fato seja menosprezado.
Felski (2003) menciona que as feministas
condenam os contos de fadas,
Na realidade,
pode-se dizer que essa crítica feminista carece de um aprofundamento nas raízes
dos contos maravilhosos. Tais contos, muito embora tenham conservado a essência
original (se é possível, chegar-se, de fato, ao original), passaram, ao longo
dos séculos, por depurações e acréscimos.
Por exemplo, nas
versões camponesas do conto Cinderela, a
personagem sofre não apenas de excesso de trabalho, como, principalmente, de
falta de comida, e, ao conseguir de maneira milagrosa uma árvore frutífera
cujos ramos apenas a ela se aproximam, conquista o príncipe porque “é tão
guloso como os demais no país” e “deseja tanto as frutas que promete casar-se
com a donzela que conseguir colher algumas para ele.” (DARNTON, 1986, p. 51).
Nessa versão primitiva de Cinderela,
a moça, na verdade, não precisa do príncipe para sua sobrevivência e nem está à
sua espera. É por acaso que aparece um príncipe e não há romance: o interesse
dele está concentrado nas frutas.
Na versão original
de A Bela Adormecida a história não acaba
com o beijo do príncipe acordando a bela, muito embora essa seja a versão
passada nos livros atuais e no cinema. Na verdadeira história, a princesa
acorda com a chegada do príncipe, e não há beijo. Ao contrário, conversam
longamente, segundo uma tradução do original projetada e produzida por
Aventinum Nakladatelství, Praga em 1993, e traduzida para o português em 1997:
Ela tivera muito
tempo para pensar em sonhos no que iria lhe dizer, pois tudo indica (isso a
história não esclarece) que a boa fada lhe proporcionou o prazer de ter sonhos
agradáveis enquanto dormia. Enfim, depois de se falarem durante quatro horas ainda
não tinham dito um ao outro a metade do que desejavam dizer. (PERRAULT, 1997).
Assim,
vê-se que a princesa não agiu passivamente. Usou a experiência da fala para
trocar idéias com o príncipe. A história não pára por aí. Na verdade, o
príncipe é um covarde, que tem medo da própria mãe, que é uma ogra antropófaga.
Esconde seu casamento o maior tempo possível e só o revela aos pais depois de
mais de dois anos, quando já tem dois filhos, um menino e uma menina. A
princesa é que demonstra coragem, quando o cozinheiro real vai degolá-la para
servir sua carne de repasto à sogra.
A
bem dizer, excluindo-se as interpretações psicanalíticas o tema central dos
contos de fadas é a comida, ou a falta dela. Assim,
Nesse meio tempo, todo o palácio tinha
despertado com a princesa. Cada um pensava em voltar a suas tarefas e, como não
estavam apaixonados, todos morriam de fome. A dama de companhia, apressada como
os outros, perdeu a paciência e disse à princesa, em voz bem alta, que a carne
estava servida.
Há outros exemplos: Branca de Neve morre por ter
cedido ao desejo de comer a maçã que a bruxa lhe oferece; Rapunzel fica confinada em uma torre porque sua mãe, enquanto
grávida, desejou comer o repolho do quintal da vizinha, que era uma bruxa; João e Maria caem na armadilha de uma
casa de doces e, mesmo saciados, continuam a se empanturrar.
O conto que mais
aponta a obsessão pela comida é, ao que parece, Os pedidos
ridículos. A história mostra um lenhador
pobre e cansado da vida, que, ao receber de Júpiter três desejos a serem
satisfeitos, pede, nada mais, nada menos, um chouriço. A mulher, muito mais
inteligente que ele, fica furiosa e o recrimina. Tanto lhe enche os ouvidos que
o homem deseja que o chouriço grude na ponta de seu nariz, como punição.
Esgotados de maneira tão estúpida dois desejos que poderiam lhes render fama,
fortuna e uma vida tranqüila para o resto de suas vidas, cai o homem em
desespero, pensando se deveria usar o terceiro pedido para se tornar rei, rico
e poderoso, ou, então, para tirar o horrível chouriço do nariz de sua esposa. O
interessante que ele não decidiu sozinho. Consultou a mulher sobre o que fazer.
Delegou à mulher a difícil decisão e acatou sua fala, conforme Perrault (1997):
Ela pensou na
escolha apresentada.
E embora o cetro em
tudo desse um jeito,
e quem está no trono
coroada
sempre pareça ter
nariz bem feito,
o melhor é ser
formosa e desejada:
decidiu ser bonita e
camponesa
em vez de ser rainha
sem beleza.
E para sempre ele
foi lenhador:
não ficou rico nem
mais bem vestido,
não se tornou um
grande imperador,
sonho sem futuro,
triste quimera:
teve de usar o
terceiro pedido
em deixar a mulher
como antes era...
Aliados ao problema
da alimentação, permeiam os contos de fadas, também, a ganância, a vilania, a
esperteza, o desejo de ascender socialmente – tudo para garantir a
sobrevivência em um período em que comer carne uma vez por ano era um luxo. A
realidade medieval está retratada nos contos de fadas, muito embora sua origem
seja bem mais antiga.
Não mostram apenas a
donzela frágil que necessita ser resgatada por um salvador. As bruxas disputam
com os ogros em maldade e astúcia. As madrastas (figuras constantes tendo em
vista a alta taxa de mortalidade no parto em um período pré-cesariano) são
cruéis e ardilosas. As fadas são sempre
do sexo feminino e ajudam o herói ou heroína em se livrar de situações
difíceis. As personagens femininas são inteligentes e criativas Por exemplo, Maria é quem
tem a idéia e a iniciativa de jogar a bruxa no forno, salvando assim tanto a si
mesma como seu irmão, João.
Pode-se mesmo dizer que os contos de fadas são
feministas, pois abriram espaço para as mulheres comunicarem suas idéias,
apresentarem personagens femininas corajosas, atuantes e com poder decisório. Nesses contos, as
personagens femininas tiveram a experiência da fala falante.
Fez-se, no presente artigo, uma nova abordagem
dos contos de fadas, diferente da abordagem psicanalítica de Bettelheim (1997),
que defende a fixação oral em João e
Maria, mostra o complexo de édipo em Branca de Neve, e aponta o despertar da feminilidade
Isso indica as infinitas possibilidades de
interpretação que os contos de fadas possibilitam – aos leitores, aos ouvintes,
crianças, jovens, adultos ou idosos. Isso indica, também, que o bibliotecário
tem a liberdade de escolher a interpretação que mais lhe agrada e tem a
responsabilidade de permitir, seja nas atividades de Biblioterapia, seja na
Hora do Conto, que seu público-alvo desfrute dessa mesma liberdade de
interpretação.
BETTELHEIM,
Bruno. Na terra das fadas:
análise dos personagens femininos. Tradução de Arlene Caetano. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1997.
DARNTON,
Robert. O grande massacre de gatos e
outros episódios da história cultural francesa. Tradução de
Sonia Coutinho. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
FELSKI,
Rita. Literature after Feminism.
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia
da percepção. 2. ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de
Moura. São Paulo: M. Fontes, 1999.
PERRAULT,
Charles. Contos de Perrault.
Ilustração de Zdenka Krejövá; tradução de Mônica Stahel ; Rosemary Costhek
Abílio. São Paulo: M. Fontes, 1997. Não
paginado.
WARNER,
Marina. Da fera à loira:
sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega.
São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
ZUMTHOR,
Paul. A letra e a voz:
a “literatura” medieval. Tradução de Amalia Pinheiro; Jerusa Pires
Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
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Clarice Fortkamp Caldin
Professora no Departamento de
Ciência da informação, no Centro de Ciências da Educação, na Universidade
Federal de Santa Catarina.
Bacharel
E-mail: claricef@matrix.com.br
Artigo
recebido em: 19/10/2006
Aceito para
publicação em: 29/11/2006