VOZES FEMININAS NOS CONTOS DE FADAS: A EXPERIÊNCIA DA FALA FALANTE

Clarice Fortkamp Caldin

 

Resumo: Pretende destacar a experiência da fala falante nas personagens femininas dos contos de fadas. Com uma abordagem diferente da psicanalítica, elabora uma interpretação desses contos pautando-se nos poderes da voz. Discorda da crítica feminista que condena os contos de fadas. Apresenta a fome como uma temática constante nessas narrativas ficcionais. Incentiva aos bibliotecários a liberdade de interpretação de tais textos.

 

Palavras-chave: Contos de Fadas; Personagens femininas; Fala falante.

 

1 INTRODUÇÃO

 
Pretende-se realizar uma interpretação dos contos de fadas distanciada da abordagem psicanalítica até então tida como soberana. Para tanto, segue-se a linha de pensamento de Merleau-Ponty. O filósofo subdivide a fala em dois tipos: fala falada e fala falante. Na fala falada, os símbolos são conhecidos, pois “a fala falada desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida”; por outro lado, a fala falante produz significados com “intenção significativa em estado nascente.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p. 266,267). É, portanto, proposta do presente artigo destacar que as vozes femininas nos contos de fadas se configuram como fala falante.

Por que essa preocupação? Porque persiste a idéia de que as personagens femininas nos contos de fadas desempenham um papel secundário, obscurecido pelas proezas das personagens masculinas. Assim é que se passa às crianças o estereótipo da donzela frágil à espera do príncipe encantado, que não desfruta dos poderes da voz. Ora, se essa fosse a temática central dos contos de fadas, que valor tais contos teriam? Como persistiriam ao longo dos tempos sem perder o encantamento? Como poderiam ser utilizados com sucesso na Biblioterapia e na Hora do conto?

Essas são perguntas que o bibliotecário deve fazer a si mesmo, ao selecionar um conto de fadas para proceder à leitura frente a um público exigente – as crianças.        

Espera-se que o artigo forneça respostas satisfatórias e permita ao bibliotecário uma nova visão esse mundo ficcional encantado.

 

2 VOZES DAS JOGRALESAS E VOZES DAS NARRADORAS DE HISTÓRIAS  

 

A literatura medieval foi nitidamente marcada pela presença de jograis e de jogralesas. As vozes, na maioria, masculinas, tinham também, a parceria feminina. Segundo Zumthor (1993, p. 67):

 

pela boca, pela garganta de todos esses homens (muito mais raramente, sem dúvida, pelas dessas mulheres) pronunciava-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando mitos, revestida nisso de uma autoridade particular, embora não claramente distinta daquela que assume o discurso do juiz, do pregador, do sábio.

 

Jograis e jogralesas se configuravam como intérpretes da palavra poética, ora cantando, ora declamando poesias, ora contando histórias, ora realizando a leitura de algum feito heróico da realeza, ainda que “as jogralesas, muito numerosas no século XIII, pareçam ter sido principalmente dançarinas.” (ZUMTHOR, 1993, p. 63, grifo do autor).

Tais intérpretes da poesia não eram, como sempre se acreditou, marginais. Muito embora alguns tivessem vida nômade, indo de feudo em feudo, outros nutriam certos vínculos empregatícios com determinadas cortes régias. O certo é que comiam das iguarias do rei, vestiam-se com roupas alegres e faziam do uso da voz seu modo de vida e ganha-pão.

Nessa sociedade medieval as mulheres não estavam excluídas. Zumthor (1993, p. 63) destaca “Agnes, cantora favorita do rei Venceslau da Boêmia, por volta de 1300.” Assim, as mulheres não eram apenas camponesas ou cortesãs, mas desfrutavam de certo status social, de certa carreira artística, vinculada aos poderes da voz, muito embora a  sua fosse a fala falada.

O mesmo se pode dizer a respeito das contadoras de histórias. Vindas de camadas sociais diferentes, ocupando funções sociais diversas, as mulheres se configuraram como narradoras por excelência, valendo-se da voz com meio de transmissão da fala falada: os rituais narrativos garantiam a perpetuação de velhos contos. Nas veilllés, nos encontros noturnos para troca de fofocas, notícias e histórias, as mulheres exerciam seus poderes da fala.

Warner (1999) historiou a trajetória das narradoras. Apresenta Sibila, profetisa de Apolo, que, com a expansão da cristandade refugia-se em uma gruta, exercendo as artes mágicas, uma delas, a de contar histórias. Segundo a Autora, a gruta da Sibila “foi mencionada pela primeira vez numa lenda medieval, não clássica: aparece no romance cavalheiresco Guerino il Meschino, escrito por Andrea da Barberino (também chamado Andrea dei Magnabotti) em 1391.” E acrescenta que a Sibila “representa uma sobrevivente cultural imaginária na passagem de uma era para outra.” (WARNER, 1999, p.27-28, 36).

De acordo com pesquisas da Autora, as narradoras de histórias no mundo ocidental remontam aos gregos. Assim é que Platão já falava no “conto das velhas”, e Apuleio usou a expressão “um conto de velhas.” Warner (1999, p.39, 40) esclarece que “a ligação entre a fala das velhas e as fábulas consoladoras, eróticas e muitas vezes fantásticas, parece profundamente entrelaçada com a própria linguagem e com o papel da fala das mulheres.”

Assim, feiticeiras, tecelãs, velhas mexeriqueiras, criadas ou amas-de-leite, as narradoras de histórias valiam-se da voz para fortalecer o laço social, expressando sua opinião em um mundo masculino por meio da narração de contos de fadas.

Como bem disse Warner (1999, p. 22):

 

Os contos de fadas sugerem uma situação em que o próprio menosprezo pelas mulheres abriu, para elas, a possibilidade, de exercitar a imaginação e comunicar suas idéias. A responsabilidade das mulheres pelas crianças, o desprezo vigente por ambos os grupos e a suposta identificação daquelas com as pessoas simples, a gente comum, entregaram-lhes os contos de fadas como um tipo diferente de estufa, onde podiam semear seus próprios brotos e plantar suas próprias flores.

 

Enquanto narradoras de histórias, as mulheres eram toleradas com complacência pelos homens. Afinal, exerciam a fala falada. Outra coisa muito diferente foi quando começaram a escrever histórias. A palavra falada, aparentemente, cairia nos ouvidos de crianças e de outras mulheres. A palavra escrita, por outro lado, corria o risco de cair nos ouvidos dos homens. As mulheres estariam, assim, entrando em território proibido, esboçando a fala falante.  A reação não se fez esperar. Molière satirizou essas intelectuais em suas peças Les précieuses ridicules  e Les femmes savantes.  Muito embora Molière estivesse satirizando as mulheres, expôs também os ridículos de seu tempo. 

As mulheres aristocráticas do século XVII não se deixaram intimidar por homens que as ridicularizavam. Continuaram criticando os casamentos arranjados e procuraram trocar idéias em um ambiente literário com a finalidade de cultivar relações igualitárias com os homens. Assim, quando a tecelã, a fiandeira e a criada cederam lugar à literata, a fala feminina alçou vôo. De narradoras, passaram a escritoras. As mulheres puderam, enfim, dar vazão à fala falante.

Para Felski (2003), todas nós somos contadoras de histórias. Dividimos nossas histórias de vida umas com as outras. Segundo a Autora, as escritoras atuais deveriam nutrir a preocupação maior de criar e inovar novas tramas para a mulher. Sair do lugar-comum que são as histórias de amor trágicas, com heroínas que recebem o prêmio do casamento ou a castigo da morte – o modelo tradicional, ainda que com variantes.

Na verdade, na tentativa de apresentar uma mulher atuante na trama, as escritoras contemporâneas esboçam histórias de mulheres bem sucedidas profissionalmente, mas que, em matéria de vida sentimental, são um fracasso. É como se a fala falante no exercício da profissão impedisse o coração de sentir. É como se recebessem uma punição pelo privilégio da voz. Como paliativo, o sexo promíscuo que satisfaz por instantes, mas deixa lacunas ao longo do dia.

As escritoras atuais narram, também, histórias de mães e filhas: amor e ódio, sussurros e gritos – essa é a nova voz das mulheres nas histórias que tratam dos conflitos de mães e filhas. Rich (apud FELSKI, 2003) destaca a falta da fala das mães. A elas não é concedido expressar seus anseios. Ser mãe basta. Às filhas, mulheres modernas, é concedido o direito de exporem sua voz. Assim, cabe às mães a fala falada e, às filhas, a fala falante.

Felski (2003) destaca Margaret Atwood, Ângela Carter e  A. S.  Byaoth, escritoras que, inspiradas nos tradicionais contos de fadas, apresentam as mulheres em diferentes papéis: da fada à bruxa, da vítima à algoz. Inseridas em uma realidade que permite e exige várias posturas, as mulheres que Atwood retrata têm o poder da fala.  Esse poder, já o tinham as personagens dos contos de fadas, muito embora tal fato seja menosprezado.

 

3  VOZES FEMININAS NAS PERSONAGENS DOS CONTOS DE FADAS

 

Felski (2003) menciona que as feministas condenam  os contos de fadas, em especial Cinderela e A Bela Adormecida, pois tais contos parecem mostrar a passividade feminina e a eterna espera pelo príncipe encantado, que as salvará de uma vida trabalhosa ou tediosa.

Na realidade, pode-se dizer que essa crítica feminista carece de um aprofundamento nas raízes dos contos maravilhosos. Tais contos, muito embora tenham conservado a essência original (se é possível, chegar-se, de fato, ao original), passaram, ao longo dos séculos, por depurações e acréscimos.

Por exemplo, nas versões camponesas do conto Cinderela, a personagem sofre não apenas de excesso de trabalho, como, principalmente, de falta de comida, e, ao conseguir de maneira milagrosa uma árvore frutífera cujos ramos apenas a ela se aproximam, conquista o príncipe porque “é tão guloso como os demais no país” e “deseja tanto as frutas que promete casar-se com a donzela que conseguir colher algumas para ele.” (DARNTON, 1986, p. 51). Nessa versão primitiva de Cinderela, a moça, na verdade, não precisa do príncipe para sua sobrevivência e nem está à sua espera. É por acaso que aparece um príncipe e não há romance: o interesse dele está concentrado nas frutas.

Na versão original de A Bela Adormecida a história não acaba com o beijo do príncipe acordando a bela, muito embora essa seja a versão passada nos livros atuais e no cinema. Na verdadeira história, a princesa acorda com a chegada do príncipe, e não há beijo. Ao contrário, conversam longamente, segundo uma tradução do original projetada e produzida por Aventinum Nakladatelství, Praga em 1993, e traduzida para o português em 1997:

Ela tivera muito tempo para pensar em sonhos no que iria lhe dizer, pois tudo indica (isso a história não esclarece) que a boa fada lhe proporcionou o prazer de ter sonhos agradáveis enquanto dormia. Enfim, depois de se falarem durante quatro horas ainda não tinham dito um ao outro a metade do que desejavam dizer. (PERRAULT, 1997).

           

            Assim, vê-se que a princesa não agiu passivamente. Usou a experiência da fala para trocar idéias com o príncipe. A história não pára por aí. Na verdade, o príncipe é um covarde, que tem medo da própria mãe, que é uma ogra antropófaga. Esconde seu casamento o maior tempo possível e só o revela aos pais depois de mais de dois anos, quando já tem dois filhos, um menino e uma menina. A princesa é que demonstra coragem, quando o cozinheiro real vai degolá-la para servir sua carne de repasto à sogra.

            A bem dizer, excluindo-se as interpretações psicanalíticas o tema central dos contos de fadas é a comida, ou a falta dela. Assim, em A Bela Adormecida, a preocupação de todos no castelo, ao despertar do sono de cem anos, foi o jantar, de acordo com Perrault (1997):

 

Nesse meio tempo, todo o palácio tinha despertado com a princesa. Cada um pensava em voltar a suas tarefas e, como não estavam apaixonados, todos morriam de fome. A dama de companhia, apressada como os outros, perdeu a paciência e disse à princesa, em voz bem alta, que a carne estava servida.

 

Há outros exemplos: Branca de Neve morre por ter cedido ao desejo de comer a maçã que a bruxa lhe oferece; Rapunzel fica confinada em uma torre porque sua mãe, enquanto grávida, desejou comer o repolho do quintal da vizinha, que era uma bruxa; João e Maria caem na armadilha de uma casa de doces e, mesmo saciados, continuam a se empanturrar.

O conto que mais aponta a obsessão pela comida é, ao que parece, Os pedidos ridículos. A história mostra um lenhador pobre e cansado da vida, que, ao receber de Júpiter três desejos a serem satisfeitos, pede, nada mais, nada menos, um chouriço. A mulher, muito mais inteligente que ele, fica furiosa e o recrimina. Tanto lhe enche os ouvidos que o homem deseja que o chouriço grude na ponta de seu nariz, como punição. Esgotados de maneira tão estúpida dois desejos que poderiam lhes render fama, fortuna e uma vida tranqüila para o resto de suas vidas, cai o homem em desespero, pensando se deveria usar o terceiro pedido para se tornar rei, rico e poderoso, ou, então, para tirar o horrível chouriço do nariz de sua esposa. O interessante que ele não decidiu sozinho. Consultou a mulher sobre o que fazer. Delegou à mulher a difícil decisão e acatou sua fala, conforme Perrault (1997):

 

Ela pensou na escolha apresentada.

E embora o cetro em tudo desse um jeito,

e quem está no trono coroada

sempre pareça ter nariz bem feito,

o melhor é ser formosa e desejada:

decidiu ser bonita e camponesa

em vez de ser rainha sem beleza.

E para sempre ele foi lenhador:

não ficou rico nem mais bem vestido,

não se tornou um grande imperador,

sonho sem futuro, triste quimera:

teve de usar o terceiro pedido

em deixar a mulher como antes era...

 

Aliados ao problema da alimentação, permeiam os contos de fadas, também, a ganância, a vilania, a esperteza, o desejo de ascender socialmente – tudo para garantir a sobrevivência em um período em que comer carne uma vez por ano era um luxo. A realidade medieval está retratada nos contos de fadas, muito embora sua origem seja bem mais antiga.

Não mostram apenas a donzela frágil que necessita ser resgatada por um salvador. As bruxas disputam com os ogros em maldade e astúcia. As madrastas (figuras constantes tendo em vista a alta taxa de mortalidade no parto em um período pré-cesariano) são cruéis e ardilosas.  As fadas são sempre do sexo feminino e ajudam o herói ou heroína em se livrar de situações difíceis. As personagens femininas são inteligentes e criativas Por exemplo, Maria é quem tem a idéia e a iniciativa de jogar a bruxa no forno, salvando assim tanto a si mesma como seu irmão, João.

Pode-se mesmo dizer que os contos de fadas são feministas, pois abriram espaço para as mulheres comunicarem suas idéias, apresentarem personagens femininas corajosas, atuantes e com  poder decisório. Nesses contos, as personagens femininas tiveram a experiência da fala falante.

 

4 REFLEXÕES

 

Fez-se, no presente artigo, uma nova abordagem dos contos de fadas, diferente da abordagem psicanalítica de Bettelheim (1997), que defende a fixação oral em João e Maria, mostra o complexo de édipo em Branca de Neve, e aponta o despertar da feminilidade em A Bela Adormecida.   

Isso indica as infinitas possibilidades de interpretação que os contos de fadas possibilitam – aos leitores, aos ouvintes, crianças, jovens, adultos ou idosos. Isso indica, também, que o bibliotecário tem a liberdade de escolher a interpretação que mais lhe agrada e tem a responsabilidade de permitir, seja nas atividades de Biblioterapia, seja na Hora do Conto, que seu público-alvo desfrute dessa mesma liberdade de interpretação.

 

REFERÊNCIAS

 

BETTELHEIM, Bruno. Na terra das fadas: análise dos personagens femininos. Tradução de Arlene Caetano. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos e outros episódios da história cultural francesa. Tradução de Sonia Coutinho. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1986.

FELSKI, Rita. Literature after Feminism. Chicago: University of Chicago Press, 2003.

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção.  2. ed. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: M. Fontes, 1999.

PERRAULT, Charles. Contos de Perrault. Ilustração de Zdenka Krejövá; tradução de Mônica Stahel ; Rosemary Costhek Abílio. São Paulo: M. Fontes, 1997. Não paginado.

WARNER, Marina. Da fera à loira: sobre contos de fadas e seus narradores. Tradução de Thelma Médici Nóbrega. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

ZUMTHOR, Paul. A letra e a voz: a “literatura” medieval. Tradução de Amalia Pinheiro; Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.

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FEMALE VOICES IN FAIRY TALE STORIES: PERSONAGES VOICE AUTONOMY

Abstract: It point out the female personages voice on fairy tale stories. With different approach psychoanalysis emphasis, elaborates a new interpretation of these fairy tales stories with the personages autonomy voices as a power. Disagrees with the critical feminist where condemns fairies stories. It presents hunger as the constant thematic in these fictional narratives. It stimulates librarians to realize a free interpretation of texts reading.

Keywords: Fairy Tale Stories; Female personages; Voice - autonomy.

 

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Clarice Fortkamp Caldin

Professora no Departamento de Ciência da informação, no Centro de Ciências da Educação, na Universidade Federal de Santa Catarina.

Bacharel em Biblioteconomia. Mestre em Literatura. Doutoranda em Literatura.

E-mail: claricef@matrix.com.br

 

Artigo recebido em: 19/10/2006

Aceito para publicação em: 29/11/2006

Revista ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, v.11, n.2, p. 283-296, ago./dez., 2006.