A comunicação participativa de
toda a população em uma democracia não se desenvolve por si só, precisando do
treinamento tanto das capacidades comunicativas pessoais quanto grupais, para
que os discursos possam se qualificar em associações de pessoas e grupos em vez
de encorajar à concorrência pelo domínio discursivo dos espaços narrativos
(CORREA, 2002). Voltar às formas associativas originais (EISLER, 1995), como
podem se desenrolar por meio de práticas estéticas (LEBORIT, 1970), é uma
estratégia possível para mudar os interesses impostos pelos domínios
sócio-culturais que são transmitidos aos grupos familiares (WEBER ; CORREA,
2001).
O
desenvolvimento da sensibilidade estética e a relação mantida com os objetos
estéticos poderiam ser favorecidos por uma educação “moral” baseada na
comunicação e na interação social, capaz de construir uma forma de vida pessoal
integrada à comunidade, e assim, desenhar e transformar a realidade (STINSON,
1998). O objetivo da democracia real é habilitar a versatilidade que capacite
nos discursos tanto quanto nas controvérsias (do que a arte e a ciência são
bons exemplos): ao propor seu treinamento pela narração grupal de contos
(WEBER; CORREA, 2001; CORREA, 2002). Segundo os irmãos Grimm, os contos
populares foram as formas naturais originais da poesia que falavam os mesmos
estilos e dialetos do povo (VALENTI, 2000). Outra proposta de instrução
coletiva para atingir os objetivos da educação estética no meio sociocultural
democrático poderia ser provida, então, pelo estímulo da narrativa poética
“natural”.
A construção social da realidade democrática é
feita de múltiplos níveis de significações que precisam de uma comunicação
multicultural entre diferentes narradores e suas linguagens expressivas,
narrativas e idiomáticas. Precisamente, a poesia entabula uma comunicação que
aproveita todas as possibilidades comunicativas e criativas que surgem ao
misturar, com concordancia, meios e recursos narrativos tanto lingüísticos
quanto corporais, dando espaço à expressão de diferentes níveis de significados
daquelas coisas que são relatadas, tornando-se uma via rainha para a educação
estética.
Neste trabalho explora-se o emprego da narrativa poética como meio
estético de comunicação sócio-cultural, entre diferentes idiomas, narrativas e
narradores: 1) no mesmo texto literário poético traduzido em dois idiomas
(português/italiano), a possibilidade de demonstrar na concordância, uma transmissão
do “sentido” poético entre diferentes idiomas; 2) na criação de um poema em
forma interativa com um grupo de dança (construindo uma coreografia e um poema
baseados em um conto de uma viagem pelas diferentes culturas do continente
sul-americano), provar a concordância do diálogo entre as linguagens corporais
dos bailarinos e verbais do narrador.
Pode-se dizer que a
caraterística principal da narrativa poética é sua pesquisa inovadora da
linguagem. Assemelha-se a uma dança literária de palavras que
misturam imagens e sons em um movimento
rítmico e contínuo da linguagem, como vagas no mar.
A recriação contínua
e interação concordantes entre as palavras, ritmos e sons dos versos provoca a
redescoberta de significados inseridos nas mensagens essenciais das coisas que
conta, quando descreve detalhes e coisas não vistas antes. As variações dos
versos do poema assemelham-se à recriação de contos, descobrindo significados
embaixo dos significados (HARROWER, 1978), que aprofundam as faces da mensagem.
A narrativa contemporânea
nos filmes, por exemplo, é uma narração de contos pelas imagens, sons e ritmos
que oferece à linguagem poética todas as possibilidades expressivas. Ali, as
imagens e a sonoridade acham seus ritmos próprios e podem atingir uma
comunicação de alto dramatismo poético. É possível fazer recriações de filmes
com técnicas “vídeo-narrativas”, editando fragmentos de filmes na seqüência que
sublinhe o conteúdo poético ou sejam realçados certos significados simbólicos,
costurando uma nova história pessoal ou grupal (CORREA, 2000).
Recriar a poesia como
se fosse a recriação de um conto, é só um ensaio de variação temática (CORREA,
2002), mas alguém pode julgar tal exercício como uma falta de respeito aos
autores originais. Contudo, não é uma simples mistura interativa feita pelo
“zapping”: a narração das versões recriadas dos contos gera uma real
participação narrativa e imaginária
compartilhada com outros (CORREA; GONZÁLEZ; WEBER, 1991).
A recriação poética, por meio da
sonoridade e o ritmo provido por diferentes idiomas e gírias, de acordo com o
estilo da polifonia poética ou verso harmônico procurado por Mário de
Andrade (1978), pode brindar a possibilidade de descobrir sentidos mais amplos
dos diferentes idiomas ao misturá-los nas concordâncias entre seus sons e
ritmos. Kristeva (2000) relata que Hannah Arendt escreveu a Karl Jaspers: “O
que fica é a lengua.” Ao lembrar a definição de Herder da poesia: “a lingua mãe
do género humano” (VALENTI, 2000), poder-se-ia dizer que a língua “fica” se a
poesía recupera o senso, amparando os enganos das falas. A procura da linguagem
da alma de humanidade - pela qual comunicar não é ditar ou impor o que é a verdade
ao outro, mas, falar a verdade dos sentimentos que não podem se expressar com
as palabras -, é a transmissão do sentido. Num exercício de
infinita criatividade, a narrativa poética faz uma “dança antropofágica” entre
as culturas e as línguas, tentando voltar à língua original feita e geradora de
todas as línguas, no intento de atingir a compreensão das essências das coisas,
independente do seus nomes (ECCO, 1994), nas mesmas ou diferentes línguas.
Como exemplo, se
propôs fazer um exercício de concordância entre as versões em Italiano e
Português do poema do poeta italiano Giacomo Leopardi (LUCCHESI, 1995):
L’infinito
O infinito
Sempre caro mi fu quest’ermo
colle Sempre cara me foi esta
colina eterna
e questa siepe, che de tanta
parte e esta sebe, que
de tanta parte
dell’ultimo orizzonte il guardo
esclude, do último horizonte o olhar exclui.
ma sedento e mirando, interminati mas sentado a mirar,
intermináveis
spazi di là de quella, e
sovrumani espaços além
dela, e sobre-humanos
silenzi, e profondissima quiete
silêncios, e uma calma
profundissima
io nel pensier mi fingo, ove per poco eu crio em pensamentos, onde por
pouco
il cor non si
spaura. E como il vento não treme o coração. E como o
vento
odo stormir tra queste piante, io
quello ouço fremir entre essas
folhas, eu
infinito silenzio a questa
voce
o
infinito silêncio àquela voz
vo comparando e mi sovvien l’eterno vou comparando e vêm-me a
eternidade
e le morte stagioni, e la presente
e as mortas estações, e
esta, presente
e viva, e il suon di lei. Cosi tra
questa e viva, e o seu ruido. Em meio a
essa
immensitá s’annega il pensier mio: imensidão meu pensamento
imerge
e il naufragar m’é dolce in questo
mare. e é doce o naufragar-me
nesse mar.
O INFINITO DE LEOPARDI E VINICIUS
Sempre cara me foi (caro mi fu) esta
eternidade (colina, o colle)...
e questa siepe (esta sebe),
accerchiando lo sguardo?
que de tanta parte exclui
o olhar do último horizonte...
Sedento e mirando, me assento a mirar,
intermináveis espaços,
spazi di lá della siepe,
e sovrumani silenzi,
e profondissima quiete (tantos silêncios duma
calma profunda)
onde eu crio em pensamentos, onde por pouco
não treme o coração:
però il cor non si spaura, é como il vento,
como o vento que ouço fremir entre essas
folhas...
É infinito o silêncio, l’infinito silenzio
a questa voce, àquela voz comparo
e vêm-me a eternidade,
(e mi sovvien l’eterno, e le stagioni morte),
e esta, presente e viva,
e anche il suon (e o seu ruido),
em meio a essa imensidão
onde meu pensamento imerge
e il naufragar m’é dolce
(porque é doce o naufragar-me nesse mar)...in
questo mare.
Nesta recriação do poema, pode-se apontar a sugerência “longínqua” mencionada por Ecco (1994):
“língua mãe não era uma língua única mas o conjunto de todas as línguas”.
3 COMUNICAÇÃO E INTERAÇÃO POÉTICAS DAS LINGUAGENS CORPORAIS E
VERBAIS
Para explorar a possibilidade de um diálogo poético
concordante entre a mensagem verbal do narrador e os movimentos corporais, foi
realizada uma experiência em que o Autor atuou como narrador de contos em
verso, criados por ele. Ao mesmo tempo, coordenava o ensaio da equipe de dança,
no intento de construir uma coreografia baseada na temática de uma viagem
imaginária pelas terras e culturas da América do Sul.
A versatilidade e
recriação das mensagens poéticas na procura de novas concordâncias constata-se
nas falas diárias, nessa classe de comunicação poética que integra os homens à
natureza, construindo juntos uma “obra coletiva anônima”, em que a voz do poeta
pode ser considerada uma representação sinfônica “da alma humana”, em sua
“procura duma dimensão transcendente”5, como se algum deus estivesse
pronunciando palavras comuns e sons da natureza. A fala poética diária fornece
uma variedade de expressões que abrangem manifestações instantâneas – pode-se até dizer, emergem de jeito
“mágico”-, tanto por meio da linguagem culta quanto da popular (VENKOVSKY,
1994).
A fala poética
popular tem um papel no desenvolvimento da sensibilidade estética e na
construção social da realidade democrática, feita de múltiplos níveis de
significações que integram o humano à natureza, e que precisam acrescentar as capacidades sensíveis de todas
as pessoas em seus próprios meios e incentivar capacidades de contatos
autênticos entre elas. Isso tem muita vigência no mundo multicultural de hoje,
que é refletido na inter-textualidade das estruturas literárias e sociais do
tempo pós-moderno, fornecido por multidão de textos, idiomas, identidades,
modos conversacionais e narradores diversos, oferecendo, segundo Payne (2002),
uma multiplicidade de histórias diferentes e variações locais que não são
suscetíveis de ser resumidas nem unificadas num relato abrangente.
O ensino dos
sentimentos aos jovens poderia sarar a
alma doente da sociedade e dos homens que moram nela [segundo um
homem da rua6 da Nova
Iorque , que falou no
trâmite da filmação da investigação teatral do filme Ricardo III (Filme:
“Looking for Richard”, Al Pacino, 1996)]. A busca própria da poesia é dos
significados emocionais, o que é o princípio duma forma de biblioterapia (RUBIN,1978;
CALDIN, 2005), a Terapia Poética, que tem as propriedades de facilitar a
objetivação dos sentimentos (HARROWER, 1978), e do sentir os próprios ritmos
corporais (LEEDY, 1969).
Fazer a concordância
entre as palavras ditas com os sentimentos da alma de quem as fala7, é a chave-mestra que abre
as portas da compreensão emocional - não só performance teatral no sentido do ritmo da acentuação das
palavras no “iambic pentameter” dos textos do Shakespeare [Falado no mesmo
filme de Al Pacino pela atriz inglesa Vanessa Redgrave, que fora protagonista
do filme “Isadora”]-, para começar o caminho da concordância com outros homens
que gostem de escutar dos cantos consoantes e das visões compartilhadas para
transformar a realidade, que, até agora, é configurada por valores que não são
humanos, mas, enganam, para que uns
poucos se aproveitem dos outros e da natureza, de uma maneira utilitária e
destrutiva [Filme: “Behind the sun”, Walter Salles, 2001].
Na sua procura de
concordância, a arte da comunicação e criação poética pode isentar a dor dos
homens condenados por essas concepções –como aqueles “nos campos nazis, na
relegação staliniana ou nas cadeias argentinas” (PETIT, 2004)-, ou bem
fortalecer o senso da pertinência do homem à natureza –sendo como os meninos de
“Orfeu” [filme de Marcel Camus, 1959], cantando e dançando para o sol acordar,
decorando o que fazia Orfeu, que ficou dormindo ou morreu com sua namorada.
A felicidade é como a pluma
Que o vento vai levando pelo ar
Voa tão
leve
Mas tem a vida breve
Precisa que haja vento sem parar.
A minha felicidade está sonhando
Nos olhos
da minha namorada
É como esta noite, passando, passando
Em busca da madrugada
Falem baixo,
por favor
Prá que ela acorde alegre como o dia
Oferecendo beijos de amor.
Vinicius de Moraes e
Tom Jobim, (“A felicidade”). [Moraes, 1991]
1 Um adelanto na forma de oficina desse trabalho, foi
aceitado -mas não apresentado- pelo/ ao Congresso “Quebrando fronteiras:
danças, corpos e multiculturalismo”, Salvador, Bahía, Brasil, 3-10 de Agosto de
2003: “Cantando e dançando como meninos para o sol acordar: uma visão
multicultural da narrativa poética” por Julio Enrique Correa.
2 A Performance dirigida por
Judith Wiskitski (DaCi Buenos Aires), com as dançarinas: Silvina Álvarez,
Patricia Clark, e Luciana Friedlander foi feita para ser depois representada no
Congresso de dança “Rompendo
Fronteiras”, Salvador, Bahia, Agosto 2003.
3 “Los ríos”,
“El Aconcagüa”, “Las Nubes”, “La
estrella polar”, en Nicolás
Guillén, El Gran Zoo,
(Buenos Aires: Ed. Quetzal, 1967).
4 Nesta parte um bailarino se integrou
à equipe de dançarinas para induzir a dança como um envolvimento de pessoas
caminhando em sentidos diversos, representando um desenho do movimento do rio e
das ruas da cidade. Em correspodência, o narrador fechou seu relato, no qual
descreveu a confluência dos rios no “Rio de
5 registrado no vídeo “A poesia de cada dia” (Vencovsky,
1994).
6 “When we
speak with no feeling we get nothing out of our society. We should speak like
Shakespeare. We should introduce Shakespeare into the Academy. You know why? Because then the kids will have
feelings. We have no feelings. Its why is easy to get a gun and shoot each
other. We don’t feel for each other. But if we were taught to feel, we wouldn’t
be so violent. (Shakespeare) did more than help us: he instructed us”.
7 “Shakespeare’s poetry and his iambics flote and
descend through the pentameter of the soul, and it’s the soul; if we like, the
spirit of real concrete people going through hell and sometimes, moments of
great achievement and joy…. that is the pentameter you have to concentrate on,
and should you find that reality, all the iambics will fall into place”.
AGRADECIMENTOS
Eu agradeço à Professora Adriana Almeida do Centro de
Estudos Brasileiros (Buenos Aires), o seu alento e correção do primeiro texto,
e à Professora Clarice Fortkamp Caldin, a sua fraternidade científica ao longo
da correspondência pelo artigo.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma, a herói sem nenhum caráter. Edição crítica
de Telê Porto Ancona Lopez. Introdução dedicada A.M.Calvancanti Proença. Rio de Janeiro: LTC,
1978.
CALDIN, Clarice Fortkamp. Biblioterapia: atividades
de leitura desenvolvidas por acadêmicos do Curso de Biblioteconomia da
Universidade Federal de Santa Catarina Biblios (21), año 6, n. 21-22,
Ene-Ago 2005.
CORREA, Julio; GONZÁLEZ, Olga; WEBER, Marta. Story
telling in families with children: a therapeutic approach to learning problems.
Contemporary Family Therapy, v.13, n. 1, p. 33-59, Feb. 1991.
CORREA, Julio. Videonarrativa: un nuevo recurso
expresivo en la creación y recreación narrativa. Sueño Despierto (Bs. As.),
n. 10, p. 47-51, Jul. 2000.
CORREA, Julio. La narración de cuentos al grupo: un
modelo de construcción narrativa grupal. Revista de Ciencias Sociales, [Universidad de Costa Rica], v. 4, n. 98,
p.137-153, 2002.
HARROWER, Molly. The therapy of poetry. In: RUBIN, Rhea
Joyce (Ed.). Bibliotherapy Sourcebook.
KRISTEVA, J. Hannah Arendt: El genio femenino.
Buenos Aires: Paidós, 2000.
LEBORIT, Henri. Biología y Estructura. Caracas:
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LEEDY, Jack. Poetry Therapy: the use of poetry in the
treatment of emotional disorders,
LEOPARDI, Giacome.”L’infinito”, versão do autor original e tradução
de Vinicius de Moraes. In: LUCCHESI, M. Verso e Versão, Poesia Sempre,
n. 5, p. 253-260, fev. 1995.
MORAES,
Vinicius. Livro de Letras. São Paulo: Editora Schwarcz, 1991. 241 p.
PAYNE,
Michael. Diccionario de teoría crítica y estudios culturales. Buenos
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RUBIN, R.J. Using Bibliotherapy: a guide to theory
and practice. London:
Oryx Press, 1978. 246 p.
STINSON, Susan. O curriculo e a moralidade da
estética. Pro-Posições, v. 9, n. 2, p. 23-34, 1998.
VALENTI, Eduardo. Todos los
cuentos de los Hermanos Grimm [Prólogo]. Madrid/ Buenos Aires: Editoriales
Rudolf Steiner, Mandala y Antroposófica, 2000. 699 p.
VENKOVSKY, Klaus. A poesia de cada dia. Aspectos da Cultura Brasileira.
[São Paulo] : Instituto Cultural Itaú, 1994. Vídeo
WEBER, Marta; CORREA, Julio. Abordaje psicosocial del
conflicto familiar y de pareja. El contexto sociocultural y la propuesta de Talleres de
Comunicación. Dinámica (Bs. As.), Año 7, n. 4, p.
41-50, 2001.
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E-mail: fuacta@intramed.net.ar
Artigo recebido
em: 05/02/2006
Aceito para publicação em: 19/04/2006