ENSINA-SE CORRETAMENTE O QUE SE ENSINA A QUEM VAI SER BIBLIOTECÁRIO?

Francisco das Chagas de Souza

Resumo

Trata-se de questionamento, à luz de uma visão crítica, com a finalidade de evidenciar a natureza da atividade bibliotecária permitindo demonstrar que o procedimento adotado para a formação do bacharel em biblioteconomia, especialmente no Brasil, não o prepara para compreender, tanto a natureza de sua atividade profissional — seu papel social — quanto as formas suficientes para dar maior sentido humanístico à sua atuação na sociedade.

A formação de recursos humanos técnicos pode tomar mais de um caminho para alcançar, como resultado, a preparação de indivíduos fiéis a formas ou modos de fazer. Nesse sentido, o objetivo desejado é orientar, pelo doutrinamento, para alvos "definitivos". Isso significa que o propósito, a alcançar vai enfatizar o conteúdo técnico e a ele vai colar um conjunto de atitudes, valores e normas comportamentais que se manifestarão na rotina de trabalho dos futuros profissionais.

Gorz, Certeau, Lefebvre e Postman sob diversas abordagens demonstram diferentes facetas sob as quais as manifestações dos especialistas [técnicos] não só estão carregadas das estreitas certezas significativamente impressas em suas mentes pela sua preparação ao exercício profissional, mas demonstram também como isso interfere e limita a sua relação com o seu público. Embora Certeau defenda a idéia de que o público, ao serem pessoas, seres humanos, mentes criadoras, termina por romper com certos limites impostos pelos especialistas e por subverter a ordem dada pela fé dos profissionais, não deixa, contudo, de receber uma influência negativa da ação do técnico.

De outro lado, Certeau, Lefebvre e Postman convergem em suas análises para a demonstração do foco original da questão que está centrado fundamentalmente na linguagem, uma tecnologia segundo Postman, e na escrita, um fator terrorista segundo Lefebvre e Certeau. Terrorista é a escrita porque impõe vontades, verdades, concepções de uns [poucos] sobre muitos e sustenta-se menos num mundo de realidade sensível, corporificada materialmente, pois atrela-se a um mundo essencialista, idealista, dando ao texto escrito a precedência sobre as coisas do dia-a-dia. Desse ângulo de leitura, a linguagem por não ser neutra em forma e conteúdo [Postman], dirige ideologicamente as ações humanas, não sendo controlada pelo homem e a escrita, pelas suas possibilidades, especialmente a de recorrência [Lefebvre; Certeau], dita o funcionamento da sociedade.

A recorrência é um substrato imediato proporcionado pela memória a qual na sociedade da escritura, essencialmente terrorista [Lefebvre], é representada imediatamente pelos acervos documentais. Arquivos e bibliotecas, nesse sentido, são pólos básicos de sustentação dessa possibilidade. Em ambos estão guardados os registros ou acervos que contêm os elementos simbólicos garantidores da ordem, do padrão, da norma [leis] que são estabelecidas para a auto-sustentação e perpetuação de grupos de poder, sejam quais sejam as suas crenças políticas. Porém, pelo simples fato de estarem guardados não quer dizer que tais acervos estejam em condições de exercer a função pela qual existem. Quem lhes dá essa condição é a atuação profissional-técnica dos arquivistas e dos bibliotecários.

Falando apenas de bibliotecário que, segundo Oliveira, foi .historicamente uma evolução profissional do arquivista, pode-se observar nele, pela funções que exerce, o guardador ou guardião de interesses muito claramente relacionados com o poder que estatui a ordem. E um profissional que se define não como interessado pelos que sofrem a ação da ordem, sempre manifestada sob a forma de repressão, violência real ou velada, mas sempre antecipadamente insinuada. Ora, isso explica, portanto, algumas das maneiras com que a escola atua na formação do bibliotecário, ao partir de uma opção conformadora, desenvolvendo um processo de formação que, mesmo nos países ditos desenvolvidos, não orienta o trabalho do bibliotecário para uma relação de mai aproximação com o público, como norma, segundo os testemunhos expresso; por Grogan e por Radford. Isso, em que pese toda intenção de bondade, mantém adormecida para a prática a idéia de profissão humanista que aparece no: discursos bibliotecários, desde que se tome o humanismo no sentido contemporâneo Kantiano do homem, como criador de seu próprio ser e gera dor de sua própria natureza (Japiassu e Marcondes). De outro lado, como mais provável que esse apregoado Humanismo quer dizer "a idéia segundo qual toda formação sólida repousa na cultura clássica (Humanidades) (Japiass e Marcondes)", — portanto uma idéia conservadora, de origem dos grupo dominantes e fabricadores da ordem, — essa idéia é portanto uma falsificação ou sombreamento de um propósito quando mencionada na graduação de biblioteconomia e na prática bibliotecária que se costuma adotar no Brasil.

O graduado em Biblioteconomia no País, em que pese toda a retórica, se aproxima mais do que Gorz vê como o resultado do processo da formação técnica, o fachidioten [idiota especializado], salvo pouquíssimos casos individuais em que, por autodidatismo, há candidatos à profissão com outra base intelectual, que se distancia da média. Porém, de qualquer modo, mesmo essa aproximação com o ideal de Rubens Borba de Moraes, não torna o caso desse último candidato à profissão menos comprometido com o poder instituidor da ordem [qualquer que seja] que o emprega e, mais evidente, por não ser um mero fachidioten, sabe ou deveria saber a dimensão de seu compromisso, que é o de fortalecer a repressão e reforçar os mecanismos de submissão, podando por essa clareza, agir mais eficazmente e garantir com mais louvor o seu emprego ou seu espaço de livre prestação de serviço.

A questão aqui em análise, não se aferra a um ponto de vista moral. O que se quer é fazer um esforço intelectivo de desvelamento da função que o bibliotecário exerce historicamente na sociedade. E por não ter sentido moral, este texto não postula e nem objetiva que qualquer bibliotecário tenha crise de consciência ao reconhecer ou desvendar sua participação, seu papel, na sociedade. A meta principal que se deseja com esta discussão é atingir como alvo que a escola bibliotecária forme um profissional crítico como-condição para que conheça seu lugar de guardião da ordem, portanto, de um burocrata comprometido com a sujeição das pessoas. Saber isso, certamente dar-lhe-á maior confiança e torná-lo-á autêntico em seu trabalho, dignificando-o como faria qualquer outro trabalhador que tem como foco de sua atividade a garantia da ordem. Postular, isso é pedir à escola de biblioteconomia que não se limite simplesmente à formação decorrente da ministração de meros conteúdos técnicos, instrumentais, idiotizantes, mas que avance pelos conteúdos históricos, filosóficos, políticos etc. que somem na preparação desse guardião o sentido da razão de ser de sua atividade. Isso poderia lhe dar, também, a compreensão da dimensão de seu valor social.

A importância da adoção de tal estratégia torna-se incalculavehhente evidente, à medida que permite ser forjada a percepção pelos futuros bibliotecários de que guardiãos, ao serem uma categoria de policiais, tendem a ser semelhantemente valorizados e semelhantemente remunerados. Ou seja, ganham mais à proporção que o poder que defendem requer maior proteção. Isso explica, em parte, porque bibliotecários de empresas de grande porte, portanto de empresas com maior risco de perda de informações valiosas, tendem a ser melhor remunerados que aqueles que trabalham em empresas menores. O mesmo raciocínio vale no âmbito governamental. Por exemplo, o que explica que bibliotecários de empresas estatais recebam mais e melhores salários que os bibliotecários das bibliotecas públicas de um mesmo governo?

A despeito de peculiaridades como essas, que se apresentam dentro do mercado profissional, os estudantes de graduação em biblioteconomia recebem um conhecimento estéril quanto ao funcionamento dos diferentes contextos em que poderão vir a atuar, pois embora venham a ser essencialmente guardiãos dos interesses de um dado grupo que controla um determinado poder, eles atuam em contextos diferenciados, em campos disciplinares distintos e com recursos materiais singulares. O mais sério dilema que a escola estabelece termina sendo o de focalizar a uniformização do campo de trabalho, do mercado, e ao tentar elucidar o que é divergente, por não ter investido em seus alunos na formação básica em campos disciplinares contextualizadores, vai reforçar a mesmice da abordagem técnica, instrumental, idiotizadora. E o que acontece com certas disciplinas optativas de alguns currículos plenos de graduação em Biblioteconomia que prevêem carga horária para: Biblioteca Escolar, Universitária, Pública etc. Caso a abordagem fosse pelo contexto, e as disciplinas contextualizadoras tivessem sido ofertadas, haveria um aproveitamento bem mais consistente de um viés crítico, possibilitando ao futuro agente armazenista de pacotes de informação, bibliotecário, dominar mecanismos conceituais que lhe dariam a chance de produzir algumas mudanças, embora limitadas, no sentido de humanizar sua relação com o público com que lida.

Porém, e talvez em decorrência dessa forma de operação da escola de biblioteconomia na preparação dos futuros profissionais, o bibliotecário formado, ao insistir em priorizar o armazenismo, aplicando na relação com seu público o que Grogan denomina de "comportamento de esquiva", esteja produzindo uma percepção, em parte do público mais urbanizado, neste momento de grandes alternativas de acesso à informação, oferecidas pelas modernas tecnologias de comunicação, de que deverá acontecer uma mudança de guarda no que concerne à proteção da memória registrada em documentos.

Evidencia-se, a cada dia mais, que os conteúdos curriculares dos cursos de graduação em Biblioteconomia, embora válidos, serão válidos para o que realmente representam, isto é, para registrar e descrever os pacotes de informação (livros, filmes, discos etc), assegurando a sua localização, mas, acima disso, são destituídos de qualquer sentido no universo de processamento do conteúdo da informação, como condição para a geração de transformação. É esse o sentido que, entre outros, é expresso por Jakobiak quando fala no novo profissional de atividades informacionais que terá como ajudantes, auxiliares, os tradicionais bibliotecários, os bibliotecários cujo conteúdo que dominam corresponde ao que é fornecido, no Brasil, pela formação escolar que recebem nos cursos de graduação em Biblioteconomia.

Assim, progressivamente, cada vez mais a formação hoje fornecida sé assemelhará àquela que é adequada a auxiliares e técnicos pré-universitários e, portanto, cada vez menos se identificará com uma formação que seja desejável, no nível de bacharelado, para assegurar a permanência dessa mesma guarda. Essa queda no nível da qualidade de formação acadêmica do bibliotecário não mostra uma Biblioteconomia que se diminuiu, mostra sim, uma Biblioteconomia que se estagnou dentro de uma sociedade onde tudo avançou. Isso pode ser percebido, à medida que se observa que as pessoas tradicionalmente leitoras, no Brasil, continuam a ser uma elite que, identificada na década de 40 por Oto M. Carpeaux com um dado perfil tem hoje outro perfil bem diferente [Pécaut], com outro ritmo de vida, trabalhando em grandes corporações ou em organizações públicas importantes [Gomes] que lhes possibilita situar-se num mundo eletrônico e informático, apressado e consumidor não apenas de leitura mas também de informação também em novas formas/ formatos. Esse fato, dado pelo espírito modernizador, trouxe substanciais mudanças nas atitudes e valores desses grupos que não serão adequadamente supridos em suas necessidades apenas por bibliotecários que saiam de escolas de biblioteconomia, que se acreditam atualizadas apenas porque dispõem de núcleos de informática. Pois com certeza, não será somente a troca dos instrumentos, dos meios de ação, que dará ao bibliotecário a dimensão histórica, sociológica, política, econômica e, também, psicológica das mudanças.

A produção, aprovação e adoção de um novo currículo mínimo talvez nem seja necessária, mais necessário que isso é uma nova abordagem, nunca experimentada, das matérias previstas no atual currículo, ou seja a adoção de novas metodologias de trabalho didático-pedagógico; nova divisão disciplinar; redução ao mínimo necessário das cargas horárias de ensino das disciplinas técnicas tradicionais, sem desdobramentos ao longo de muitos semestres como hoje é feito com Bibliografia/ Fontes ou Catalogação e Classificação; ênfase nas matérias que fornecem conteúdos contextualizadores e incremento das práticas, em situação plena de campo ou em laboratórios vivos, por exemplo.

Isso pode ser possível! Muitas escolas têm em seus quadros professores em condições de propor e implantar novas abordagens educacionais para a área, muitos dos atuais bibliotecários têm experiência e conhecimento geral acumulados em condições ótimas para se integrarem num processo de discussão em torno das mudanças e muitos estudantes já começaram a perceber a iminência do abismo em que se encontram. Portanto, há potencial para se realizar um estudo sério e consciencioso sobre mudanças no trabalho pedagógico e no conteúdo, em condições de forjar uma nova geração de guardiãos das informações que interessam a certos agrupamentos detentores de determinados poderes. O resultado disso, serão bibliotecários que conhecerão o porquê de seu que fazer, a razão de ser de seu papel social. Diante de tudo isso, não valeria a pena sair-se das brumas para a claridade?

BIBLIOGRAFIA

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CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano; artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994.
GOMES, Angela de Castro (Org.). Engenheiros economistas: novas elites burocráticas. Rio de Janeiro: Ed. FGV, 1994.
GORZ, André. Técnica, técnicos e luta de classes. In:    (Org.). Crítica da divisão do trabalho. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 214-248.
GROGAN, Denis. A prática do serviço de referência. Brasília: Briquet de Lemos/Livros, 1995.
JAKOBIAK, François. Maitriser l’information critique. Paris: Les Éditions d'Organisati6n, 1988.
JAPIASSÚ, Hilton, MARCONDES, Danilo. Dicionário básico de filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
LEFEBVRE, Henri. A vida cotidiana no mundo moderno. São Paulo: Ática, 1991.
MORAES, Rubens Borba de. O problema das bibliotecas brasileiras. 2. ed. Brasília: ABDF, 1983.
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PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil; entre o povo e a nação. São Paulo: Ática, 1990.
POSTMAN, Neil. Tecnopólio; a rendição da cultura à tecnologia. São Paulo: Nobel, 1994.
RADFORD, Gary P. Positivism, Foucault, and the fantasy of the library: conceptions of knowledge and the modern experience. Library Quarterly, v. 62, n. 4, p. 408-424, 1992.

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Francisco das Chagas de Souza

Doutor em Educação - Professor do Departamento de Biblioteconomia e Documentação Universidade Federal de Santa Catarina - Florianópolis

Rev. ACB: Biblioteconomia em Santa Catarina, Florianópolis, v. 1, n.1, p. 49-54, 1996.